segunda-feira, 25 de maio de 2009

Matérias // Um Resgate da Pesquisa Psicodélica Brasileira



Nomes internacionais e mundialmente reconhecidos como Albert Hoffmann, Stanislav Grof, Rick Strassman e Terence McKenna automaticamente nos remetem à contemporânea epistemologia das substâncias psicodélicas. A pesquisa científica nacional, no entanto, também contou, na década de 60, com frentes investigativas afins, que, infelizmente, parecem ter se apagado no tempo e ainda não foram capazes de provocar o retorno destas drogas aos laboratórios da modernidade
em território brasileiro.

// por Ciro MacCord

Durante a primeira grande onda de pesquisas sistemáticas sobre psicodélicos, a partir do final dos anos 40, compostos como o LSD (dietilamida do ácido lisérgico), a psilocibina (oriunda de algumas espécies de cogumelo) e a mescalina (encontrado em espécies de cacto como o peiote) representaram o descortinar de um novo cenário científico, principalmente para as áreas da Psiquiatria, Psicologia e Neurologia.

O fervor destas novidades atingiu diversos países onde uma série de pesquisadores aderiu à vanguarda científica em formação, e o Brasil foi um deles, embora muito timidamente. É difícil, no entanto, demarcar um ponto exato em que a pesquisa nacional se interou e começou a participar de tais estudos. Muito deste problema ocorre em função da inexistência de um banco de dados acessível onde as publicações destas pesquisas estejam catalogadas (tão pouco digitalizadas). Muitas referências, infelizmente, se perderam – tornando extremamente difícil a sua exploração.

Como provável cientista brasileiro pioneiro no trato das drogas psicodélicas, encontramos o psiquiatra Eustachio Portella Nunes, da Divisão de Pesquisa do Instituto Psiquiátrico da Universidade do Brasil, atual UFRJ. Portella Nunes desenvolveu, em 1955, uma investigação sobre a dietilamida do ácido lisérgico (LSD-25) a fim de determinar se a substância continha qualquer grau de especificidade quanto à natureza das psicoses. Para os testes clínicos, o psiquiatra administrou o fármaco em oito pacientes com diagnósticos psicóticos: 3 casos de esquizofrenia hebefrênica (caracterizada por intensos distúrbios alucinatórios, idéias delirantes e perturbação afetiva), 2 casos de esquizofrenia catatônica (caracterizada por distúrbios psicomotores e dificuldade de fala), 2 casos de transtorno bipolar (maníaco-depressivo) e 1 caso de delirium tremens (psicose associada à abstinência de drogas ou medicamentos).

O LSD-25, enviado pelos laboratórios Sandoz – onde o composto vinha sendo pesquisado desde a sua descoberta, em 1943 – foi aplicado por via intramuscular em testes com intervalos de uma semana entre as doses para cada paciente, e, para evitar efeitos sugestivos, foram administrados placebos (água destilada) nas primeiras avaliações. As observações dos casos e efeitos foram reportadas no Jornal Brasileiro de Psiquiatria, através do artigo Investigações com a Dietilamida do Ácido Lisérgico, em 1955, onde Portella Nunes traçou uma análise dos resultados assim como delineou um breve resumo das pesquisas com LSD e mescalina desenvolvidas na época. Os seguintes trechos pertencem ao artigo:

(Descrição de caso) CASO I - M.A.S., leptossomática, 20 anos, remissão de quadro hebefrênico. 20 minutos após a aplicação de 60 microgramas de LSD começou a exibir variação rápida de humor, além de estranheza do mundo da percepção. Em momentos mostrava-se perplexa e nos inquiria sobre se não voltaria a existir como dantes, a tomar banhos, trocar de roupa, fazer as obrigações diárias. Julgava-se diferente, estranha, esquisita. Sentia dificuldade em verbalizar o pensamento na qual certas palavras e alguns temas perseveraram sem que se alcançasse o pleno sentido do que pretendia dizer. [...] Rapidamente variava de um humor angustioso e perplexo em que se mantinha a maior parte do tempo, para um riso que não parecia traduzir alegria e sim admiração ante o estranho. [...] A expressão é sempre difícil, as frases não alcançam sentido completo, palavras são repetidas numerosas vezes; reiteradamente voltam os mesmos temas [...]"

"(Descrição de caso) CASO 3 - A.D.B., atlético, 28 anos, remissão de quadro hebefrênico. Com LSD na dose de 70 microgramas. Decorridos 15 minutos da aplicação, refere sensação de leveza do corpo; recordação de cenas do passado em imagens rápidas, mas vivas e coloridas, ditas, pelo enfermo mesmo, como caleidoscópicas; sensação de bem-estar apesar da estranheza do mundo da percepção; por vezes, bloqueios do pensamento; inquietação motora, estado de consciência oscilante, com perplexidade.[...]"

"(Descrição de caso) CASO 5 - L.C., picnica, 16 anos, em remissão de psicose maníaco-depressiva - fase maníaca. Passados 20 minutos da injeção de 60 microgramas de LSD, sensação de frio e tremos das extremidades; salivação abundante e espumosa; diplopias; micropsias; sensação de estranheza do mundo da percepção; sentimento de encontrar-se em estado anômalo, absolutamente estranho e diverso de tudo quanto sentira antes; risos que a doente dizia não resultarem de sua vontade; clareza de consciência. [...]"

"(Conclusão) A dietilamida do ácido lisérgico faz reaparecer os quadros esquizofrênicos (excetuado o caso 5) aproximadamente com as mesmas características anteriores. [...] A LSD revelou certa polaridade esquizógena, pondo em marcha processos esquizofrênicos e condicionando sintomatologia esquizofreniforme mesmo em paciente que apresentara antes quadro maníaco."

"(Comentário) Este trabalho apresenta um aspecto interessante da LSD. A casuística, entretanto, é demasiadamente reduzida para permitir conclusões significativas. Isto é apenas uma preliminar e o autor vai continuar com suas observações."

Apenas depois de 6 anos encontramos um registro seqüente ao tema. O psiquiatra Paulo Luiz Vianna Guedes – patrono da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina – desenvolveu uma pesquisa clínica com seres humanos utilizando o LSD, cujo resultado foi publicado em 1961. Na investigação, intitulada Experiências com a Dietilamida do Ácido Lisérigico (LSD-25), o psiquiatra faz uma detalhada análise das possíveis vantagens psicoterápica oferecidas pelo LSD através de cinco aplicações do químico em um grupo de três pacientes: um caso grave de neurose histérica, um caso de esquizofrenia paranóide e um caso de neurose com caráter histérico.

Assim como Portella Nunes, Guedes recebeu o fármaco dos laboratórios Sandoz, entretanto, na forma de tabletes para consumo oral, cada um contendo 25 microgramas (milésimos de grama) da substância. O psiquiatra pôde observar uma série de efeitos nos pacientes que o levaram a confirmar o potencial do LSD como ferramenta de auxílio na prática psicoterápica. Entre as análises reportadas na publicação, podemos encontrar os seguintes trechos:

"(Descrição de caso) Modificações do esquema corporal – A negação de partes do corpo (não ter braços, não ter mãos), ou do corpo todo ("eu não existo") foi assinalada algumas vezes, bem como a sensação de estar diminuindo de tamanho e de se tornar "muito pequeno", "uma criança", conforme expressão dos pacientes. Um paciente perdeu, durante algum tempo, a noção da posição espacial do corpo e, por isto, queixava-se, a todo momento, de não saber para que lado estava a sua cabeça ou para que lado seu corpo estava virando."

"(Descrição de caso) Perturbações da experiência do ego – Embora nunca encontrássemos perda total da orientação quanto à pessoa, manifestaram-se comumente, em intensidade variável, francos sinais de despersonalização. Interessantes foram os casos em que paulatinamente se esfumavam os limites entre a realidade interna e a externa. [...]"

"(Conclusão) Como se vê, além das modificações várias no plano somático, a ingestão de ácido lisérgico, nas doses indicadas, provoca abundante sintomatologia psicológica, na qual ressaltam as modificações do ego, franca regressão com afloramento de mecanismos arcaicos: dissociação, identificações projetivas e introjetivas, negação. Interessante é o fato de que, mesmo durante o tempo em que está sob a ação da droga, o paciente conserva uma parte do ego que, com justeza, pode observar e descrever as modificações experimentadas por sua personalidade. Tal fato e a possibilidade de conservação, nos dias subseqüentes, da lembrança dos sucessos vividos, permitem obter, tempos depois, relatos muito fiéis da experiência.

Além dos aspectos acima aludidos, o que torna a experiência grandemente valiosa - e, talvez, aí residam as melhores propriedades da droga como auxiliar da psicoterapia - é o aparecimento, sob forma intensamente dramática, de situações e fantasias conflituosas infantis. Tal material surge, não como recordação histórica de algo passado, mas é repetido transferencialmente, sob grande intensidade afetiva, mostrando que ele - presente na atualidade do enfermo - é capaz de modelar sua conduta, dirigir seus sentimentos e interferir no seu contato com a realidade subjetiva e objetiva."

O artigo foi publicado também, no mesmo ano, na Revista de Psiquiatria do CELG – Centro de Estudos Luis Guedes, sob o título Sobre o Uso da Dietilamida do Acido Lisérgico (LSD25) Como Auxiliar da Psicoterapia.

No ano seguinte, em 1963, o psiquiatra Murilo Pereira Gomes, durante uma sessão de temas livres da psiquiatria no XV Congresso Nacional de Medicina, reportou uma pesquisa clínica também investigando os efeitos e possíveis potenciais terapêuticos do LSD. As observações geradas pelo estudo foram publicadas no periódico A Folha Médica (edição 46), em 1963, sob o título Configuração de uma Psicoterapia com o Uso do LSD-25. Os trechos a seguir pertencem ao artigo:

"(Introdução) Em setembro do ano passado, atendendo ao convite de um colega, tomei pela primeira vez a droga e, percorrendo com espírito crítico todo o intenso e dramático curso da experiência, percebi que se abriam de par em par as portas de um campo inteiramente novo e promissor que oferecia a possibilidade de compreender o modo de vivenciar o mundo e a sua patologia, o significado existencial da enfermidade e os caminhos de uma terapêutica por estes conhecimentos norteada. Logo pus-me a buscar toda a bibliografia disponível nos últimos anos [...] Soube, então, que a psicoterapia com LSD era o fascínio de certos grupos psiquiátricos de vanguarda, já tendo sida feita uma conferência em Princeton, 1959, sob a direção de Harold A. Abramsom, cujo relatório foi editado em livro, e um simpósio, o "I Simpósio Europeu sobre Psicoterapia à base de LSD-25", realizado em Göttinger, em 1960, sob a direção de Hanscarl Leuner, Chefe do Departamento de Psicoterapia da Clínica Neurológica da Universidade de Göttinger, Cadeira do Prof. Conrad.

[...]

Exatamente por ter iniciado o conhecimento da droga por uma auto-experiência e por já ter 350h de análise pessoal é que me filiei a esta última corrente. Pode-se discutir a validade ou pelo menos a utilidade do uso de uma droga elaborativa para auxiliar o trabalho psicoterápico, mas é do conhecimento de todos os especialistas em terapêutica psicológica que não são poucos os indivíduos portadores de distúrbios emocionais que oferecem dificuldades ao tratamento, não só não o aceitando a priori como também apresentando uma verdadeira muralha defensiva que impede ou dificulta a obtenção de resultados desejáveis."

"(Técnica) Em contacto com o paciente, procuramos os rumos a seguir no tratamento. Uma vez feita a indicação para a terapêutica do LSD-25, damos início a uma série de entrevistas psicoterápicas nas quais procuramos estabelecer uma relação médico-paciente favorável e tomar conhecimento das representações afetivas a fim de colher material que sirva de instrumento para o trabalho interpretativo durante a situação alucinatória. Certos de que estamos, tanto quanto possível, aptos para elaborar com segurança a comunicação do paciente, damos-lhe a droga e acompanhamos durante todo o tempo necessário.

A dosagem na primeira vez obedece ao critério de peso corporal e nas vezes subseqüentes guiamo-nos pelas respostas apresentadas aumentando ou diminuindo a mesma. A dose preconizada é de 1mcg por quilo de peso corporal. Os alcoolistas e esquizofrênicos costumam suportar grande doses sem manifestar reações.”

(Descrição de caso) Um paciente com conteúdos depressivos durante uma tomada informou que via e sentia como se dentro de si estivesse havendo uma "enxurrada de morro", descendo lama, cacos velhos, latas furadas, penicos enferrujados, "cocô de porco", trapos etc. Isto foi interpretado como a catarse de sentimentos auto-depreciativos e, quando em entrevistas posteriores se referia às dificuldades que sentia em sua vida, relacionava isto ao grupo dos fenômenos da "enxurrada do morro" e que antes da experiência não era capaz de identificá-las. E assim "enxurrada do morro" passou a ser um símbolo compreensível por mim e por ele, de um mundo interior depressivo.”

(Conclusão) A situação lisérgica "realiza" alucinatoriamente o mundo do inconsciente do indivíduo ao mesmo tempo em que o faz participar desta realização, como uma peça teatral, cômica ou dramática, e é exatamente por vivenciar o indivíduo a sua posição como personagem numa enorme peça que tem como palco a vida e personagens, ele, as sua figuras injetadas e os outros que compõem o seu grupo humano, captando a dinâmica das relações externas e internas, é que ele se sente, por assim dizer, informado ou instruído sobre a melhor maneira de realizar o seu plano de vida.

É verdade que destas experiências nasce uma outra dimensão da psicopatologia cujo estudo é um imperativo das descobertas realizadas, e que será oportunamente tratado com a profundidade necessária. Quero deixar claro que este trabalho visa apenas a comunicar o meu ingresso na pesquisa dos alucinógenos.”

Em 1964, nove anos após a (provável) primeira pesquisa nacional com psicodélicos, encontramos mais duas publicações sobre o tema: Sobre um Caso de Desdobramento da Personalidade Analisado com o Auxilio da Dietilamida do Ácido Lisérgico(LSD-25), do psiquiatra José Fraguas Neto, da USP (Universidade de São Paulo), e LSD-25, do psiquiatra Antônio Carlos Pacheco e Silva, doutor em Medicina do Departamento de Psiquiatria da USP. Sobre tais publicações, no entanto, o UltrAlice não conseguiu obter detalhes.

Podemos citar também o médico e químico José Elias Murad, mestre em Farmacologia e Ciências Médicas pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Segundo o relato do médico José Alarico Candioti, em um artigo intitulado LSD publicado em 2005, José Elias Murad, então professor de farmacologia na UFMG, submeteu-se a uma experiência clínica publicada com o ácido lisérgico em 1970. Mais uma vez, porém, o UltrAlice não conseguiu obter mais informações.

Temos ainda uma referência à uma pesquisa com LSD na análise da criatividade humana. O historiador da Medicina brasileira (também médico e filósofo) João Amílcar Salgado afirma que, nos anos 50, Santiago Freire, na época professor da UFMG, desenvolveu um experimento onde administrou doses do alcalóide em um grupo de artistas. O historiador, contudo, relata que não se sabe onde encontram-se os registros de tal investigação.

Como última referência, no sentido de resgatar o histórico científico nacional destas substâncias, temos o trabalho do químico e farmacologista Andrejus Korolkova, publicado em 1973 (após o momento em que os psicodélicos foram banidos do território científico na tentativa de bani-los da face da Terra pela política americana da Guerra às Drogas) na Revista Paulista de Medicina, sob o título Interação da Serotonina e Antagonistas com os Receptores. Korolkova desenvolveu uma investigação sobre a relação das substâncias psicodélicas com os receptores de serotonina – equação da qual resulta a teoria mais aceita sobre o mecanismo destas drogas no cérebro humano. O trecho a seguir pertence ao artigo:

(Conclusão) Serotonina vs. Alucinógenos: Os alucinógenos, também chamados psicotomiméticos, psicosomiméticos, psicogênicos, psicodislépticos, psicodélicos, misticomiméticos, ainda que de escassa aplicação terapêutica, apresentam grande interessa prático, pois produzem psicoses, algumas intensas, e são largamente consumidos, a ponto de o uso ilegal dessas substâncias constituir hoje em dia grave problema em alguns países. [...] Não se tendo esclarecido, ainda, as bases farmacológicas e fisiológicas da potência alucinogênica, não é possível formular uma teoria geral da alucinogênese. Há muito, todavia, notou-se o antagonismo entre o LSD e a serotonina, fenômeno este que pesquisas recentes têm confirmado. Conhece-se, igualmente, a tolerância cruzada entre LSD, psilocibina e mescalina. Daí ter surgido a hipótese de os alucinógenos atuarem sobre os mesmos receptores centrais que a serotonina, comportando-se como antagonistas competitivos destas.[...]”

A pesquisa psicodélica nacional teve uma vida supersônica se comparada aos registros e publicações reportadas em países como o Estados Unidos no decorrer de um extenso período. Certamente incide nesta questão o fato de os psicodélicos terem se disseminado, principalmente a partir do território norte-americano, com mais força entre os laboratórios internacionais apenas a partir da segunda metade da década de 50. Estas substâncias, apesar de estarem retornando definitivamente ao status científico após os quase 30 anos de proibição investigativa (ver matéria: O Renascimento da Pesquisa Psicodélica), não parecem, ainda, ter surtido efeito nos laboratórios brasileiros. Talvez o regime ditatório, que se iniciou em 1964, tenha sido um fator significativamente influente para uma espécie de silêncio irrecuperável sobre o tema, visto que estas drogas, como o LSD, além de protagonistas em uma pesquisa que envolveu artistas, ainda estavam culturalmente entrelaçadas à imagem dos mesmos.

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